por Gustavo Carvalho Mendonça.

I – Introdução

O presente artigo trata das atualizações à Lei nº 11.101/2005 (“Lei de Recuperação de Empresas e Falência” ou “LREF”) trazidas pela Lei nº 14.112/2020, com foco na atuação do fisco nas recuperações judiciais.

Uma preocupação das empresas em recuperação judicial é justamente o poder conferido ao fisco em relação às empresas insolventes com a Lei nº 14.112/2020.

O primeiro ponto que pode ser destacado é a possibilidade de sofrerem atos constritivos pelo fisco apesar do processo de recuperação judicial.

Nas recuperações judiciais anteriores à Lei nº 14.112/2020, havia uma previsão genérica de não suspensão das execuções fiscais. Agora, há uma nova previsão (art. 6º, §7º – B, da LREF) estabelecendo expressamente que não se aplica às execuções fiscais a suspensão do artigo 6º, I, II e III, da LREF.

Com isso, seguirão seu curso normal as execuções fiscais, sem suspensão da prescrição e possibilidade de medidas constritivas. Todavia, compete ao juízo da recuperação judicial determinar a substituição das medidas constritivas que recaiam sobre bens de capital essenciais da empresa recuperanda até o encerramento do processo de recuperação judicial.

Outra questão sensível é a necessidade de apresentação de certidões negativas de débitos tributários ou ao menos certidões positivas com efeitos de negativas tão logo juntado aos autos o plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia geral de credores. A previsão já existia na lei anterior, tendo a jurisprudência relativizado a sua aplicação pela dificuldade que uma empresa em situação de distressed tem de manter seu passivo fiscal regularizado.

Tendo o legislador optado pela manutenção da redação original da Lei nº 11.101/2005 exigindo a certidão negativa, dificilmente o judiciário continuará permitindo a manutenção da recuperação judicial após o plano de recuperação judicial sem a regularização do passivo tributário.

Além disso, poderá a recuperação judicial ser convolada em falência caso a empresa recuperanda (i) descumpra parcelamento fiscal ou acordo celebrado por meio de transação para evitar a inadimplência tributária; e/ou (ii) esvazie seu patrimônio, prejudicando os credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as Fazendas Públicas.

II – Execuções Fiscais

O artigo 6º, §7º – B, da LREF estabelece que não se aplica na recuperação judicial a suspensão para as execuções fiscais, atendendo ao disposto no artigo 187 do Código Tributário Nacional.

Como já mencionado, compete ao juízo da recuperação judicial determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial.

Conceitualmente, é relevante trazer os ensinamentos de Sacramone sobre a abrangência da natureza fiscal em relação ao débito tributário:

A natureza fiscal não é sinônima de tributária. A Lei n. 4.930/64, em seu art. 39, § 2º, caracteriza os débitos fiscais como quaisquer débitos em face da Fazenda Pública, sejam eles tributários ou não tributários. Entre os débitos não tributários, figuram “os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, aluguéis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de sub-rogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais”.

Espécie do débito fiscal, o débito tributário é decorrente de toda prestação pecuniária compulsória, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa vinculada (art. 3º do CTN). São suas espécies os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria. 1

Cumpre destacar o teor do artigo 186 do Código Tributário Nacional, que condiciona a satisfação do crédito tributário à quitação dos créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente do trabalho:

Art. 186. O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho.

Considerando a redação do artigo 186 do Código Tributário Nacional, não deveria competir ao juízo da recuperação judicial apenas a substituição dos atos de constrição, mas também afastar a expropriação de bens pelo fisco enquanto não fossem quitados os créditos trabalhistas na forma permitida pela LREF.

Para viabilizar a recuperação da empresa e a satisfação dos direitos dos credores, seria importante que a LREF limitasse os poderes do fisco além dos considerados bens essenciais, que sequer fica expresso a quem compete comprovar a essencialidade ou não essencialidade.

Nesse sentido, como bem é lembrado pelo Professor Manoel Justino, os bens, quer sejam de capital ou de outra natureza, em princípio são sempre essenciais à atividade da empresa recuperanda, destacando que “se a sociedade empresária tivesse bens suntuários, absolutamente desnecessários à sua atividade, estaria sendo praticado um ato irregular ou ilícito” 2

Em que pese os poderes do fisco não serem ilimitados em relação à constrição do patrimônio da empresa recuperanda, a medida adotada pela Lei nº 14.112/2020 não parece ser a mais acertada para viabilizar a reestruturação do empresário que fatalmente se socorre dos benefícios da Recuperação Judicial com passivo tributário expressivo e tampouco de seus credores.

Com a regra atual, que aparenta ser uma forma de potencializar a arrecadação do Estado, não são observados princípios da preservação e função social da empresa, basilares da Lei de Recuperação de Empresas e Falência, e talvez sequer a medida mais eficaz para o Estado, que, apesar da arrecadação em um primeiro momento, tende a aumentar seus gastos e/ou reduzir suas receitas ao inviabilizar as atividades de parte relevante das empresas recuperandas e gerar um efeito cascata em relação aos fornecedores – pela perda de um ente na linha de produção – e aos trabalhadores – pela perda do emprego e potencial utilização do fundo de garantia e seguro desemprego que sairão dos cofres do Estado.

III – Função Social e Preservação da Empresa

Pertinente tratar aqui, ainda que de forma sucinta, de dois dos princípios norteiam a Lei de Recuperação de Empresas e Falência, que são os princípios da função social da empresa e da preservação da empresa.

Apesar da questão principiológica relacionada à LREF gerar divergência entre a doutrina, os princípios da função social da empresa e da preservação da empresa são comumente aceitos como basilares e são extremamente relevantes para o tema ora abordado.

Pela função social que é inerente à atividade empresarial, não é apenas o seu sócio que se beneficia com a sua existência, satisfazendo – ainda que indiretamente – aos interesses da comunidade em que atua, dos seus empregados e do próprio fisco.

Importante destacarmos os comentários de Marlon Tomazette sobre o tal princípio:

Na recuperação judicial, tal princípio servirá de base para a tomada de decisões e para a interpretação da vontade dos credores e do devedor. Em outras palavras, ao se trabalhar em uma recuperação judicial deve-se sempre ter em mente a sua função social. Se a empresa puder exercer muito bem sua função social, há uma justificativa para mais esforços no sentido da sua recuperação. Reitere-se que a recuperação é da atividade e não do seu titular. 3

Para potencializar a função social da empresa surgiu o princípio da preservação da empresa, que é provavelmente o mais importante da Lei de Recuperação de Empresas e Falência.

A preocupação desse princípio vai além de salvar o empresário, visando manter a atividade em funcionamento para proteger empregados, fornecedores, fisco e comunidade como um todo.

O artigo 47 da LREF ratifica esse princípio:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Apesar da leitura do artigo ser de fácil interpretação, cumpre recorrer aos ensinamentos do Professor Manoel Justino em seus comentários sobre o supracitado dispositivo:

Deverá o juiz sempre ter em vista, como orientação principiológica, a prioridade que a lei estabeleceu para a “manutenção da empresa”, ou seja, recuperação da empresa. 4

É prudente, portanto, na aplicação da legislação que seja sopesado o intuito da lei e que seja analisado, inclusive, se – em algum nível – os poderes concedidos ao fisco não conflitam com objetivos da LREF.

IV – Certidões Negativas

Manter a exigência de certidões negativas de débitos tributários pode ser interpretado como uma das medidas negativas entre as mudanças trazidas pela Lei nº 14.112/2020.

Assim como destacado no item anterior, aqui também podemos enxergar um mecanismo com alto potencial de inviabilizar a recuperação de muitas empresas que atravessam situação de crise econômico-financeira, considerando que, geralmente, o passivo fiscal, ao lado do débito com instituições financeiras, está entre os maiores responsáveis pela situação de distressed.

Não parece ser razoável a exigência de certidão negativa para homologação de plano recuperação judicial, sendo este problema potencializado ao nos remetermos ao princípio da preservação da empresa.

Seria razoável refletir se caberia uma interpretação abrangente do artigo 57 da LREF, que exige a certidão negativa, em relação à previsão do artigo 47 do mesmo dispositivo, atentando-se, todavia, para não gerar uma insegurança jurídica. O judiciário e a doutrina terão papel fundamental nessa questão.

V – Convolação em Falência

O artigo 73 da LREF traz as circunstâncias em que o juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial. Para o tema ora tratado, é relevante citar os incisos V e VI:

Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial:

(…)

V – por descumprimento dos parcelamentos referidos no art. 68 desta Lei ou da transação prevista no art. 10-C da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002; e

VI – quando identificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as Fazendas Públicas.

Para reforçar o poder conferido ao fisco, o descumprimento de obrigações tributárias ocasiona a convolação da recuperação judicial em falência, medida que deve ser adotada pelo juiz.

A inclusão do inciso V poderia ser repensada haja vista que a Lei nº 10.522/2002 prevê parcelamento para a empresa em recuperação judicial, mas o crédito fiscal permanece como crédito não sujeito à recuperação judicial, como mencionado anteriormente. Nesse sentido, se não há submissão à recuperação judicial, a inadimplência do parcelamento não deveria resultar em recuperação judicial.

Conceitualmente, cumpre destacar que a Lei nº 10.522/2002 prevê que o inadimplemento de parcelas ocorrerá em caso de falta de pagamento de 6 (seis) parcelas consecutivas ou 9 (nove) parcelas alternadas; ou em caso de falta de pagamento de 1 até 5 parcelas, se todas as demais estiverem pagas.

A convolação em falência pelo esvaziamento patrimonial, na prática, talvez não gere efeitos tão consideráveis, haja vista que os recursos já teriam saído da recuperanda.

Destaca-se o comentário do Professor Manoel Justino sobre o tema:

Nesses casos, agora será decretada a falência, o que porém talvez não leve a qualquer resultado prático. Isso, porque, se não há mais bens em decorrência do esvaziamento, nada haverá a ser arrecadado para pagamento dos credores. É verdade que a lei prevê (§2º) que os credores que já receberam valores devem devolver tais valores à massa falida que então se formará. No entanto, é duvidoso o resultado dessa determinação de devolução, até porque dirigida contra credores que, ao menos em tese, apenas exerceram o direito de receber o produto da venda. 5

VI – Considerações Finais

As modificações da legislação falimentar no que tange à atuação do fisco nos processos de recuperação judicial não aparentam ter sequer melhorado problemas que já existiam, havendo um risco de piora que seria sofrido (i) pelas empresas em crise a curto prazo; (ii) pelas pessoas (físicas/jurídicas) que têm vínculo; e provavelmente (iii) pelo próprio fisco em longo prazo com a perda de arrecadação e desembolso de recursos.

Talvez a jurisprudência e a doutrina possam direcionar a interpretação das novas disposições para melhor atender as empresas em situação de distressed, seus credores e, inclusive, o fisco.


Bibliografia:

Mamede, G. Falência e Recuperação de Empresas – Direito Empresarial Brasileiro. São Paulo: Grupo GEN, 2021.

Justino Bezerra Filho, M. Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005: Comentada Artigo Por Artigo. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2021.

Sacramone, M. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Editora Saraiva, 2021.

Tomazette, M. Curso de Direito Empresarial v3 – Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Editora Saraiva, 2021.

Tomazette, M. Comentários à Reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Editora Foco, 2021.

 

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